sexta-feira, 1 de maio de 2020

QUANDO ENCONTREI RAY CHARLES NO CAMINHO DE SANTOS

À caminho do mar, Ray balançava seus pés freneticamente no  breu solitário dos cegos.






Num regular dia quente de julho, em Sampa estou descendo a serra, como dizem no jargão popular. Eu, com cara e sotaque de gringo, assimilei totalmente a expressão “descer a serra”. Isto não me incomoda nem requer um preparo especial já que desco em boa companhia garantida e com seguro de vida vou na onda da coletividade. Não me convence um seguro obrigatório garantido pelas autoridades sejam ela federais ou municipais, desço a serra montado num cometa que por sua vez tem quatro rodas e uma mecânica germânica assinada Mercedes, que não é nenhuma amante espanhola, e todo este cometa sobre rodas é encorpado por uma carroceria assinada com o nome do desbravador do grande Marco Polo. Como não se sentir bem acompanhado em descer a serra do mar?

Logo mais, após me acomodar numa poltrona dianteira, ao meu lado justaposto, uma dupla de poltronas estava recebendo seus passageiros dos quais um é o illustre rapaz que chamo doravante Ray De Santos e uma moça de uns 23 anos (sem nome) com criança muito pequena, com não mais que três meses de idade e ainda lactante. Sem nome era mãe de uma criança bonita. A criança vivia seus primeiros contatos com seu novo mundo ainda no conforto do colo da sua progenitora. Isto me sugeriu imediatamente algo de uma beleza indecifrável. A criança tinha um rosto rosado, pelo frescor da sua recém chegada ao mundo e demonstrava um olhar diminuto e sonolento como se pudesse imaginar que o ventre da mãe será sempre seu aconchego sendo eternamente sua casa natal e sua casa para a vida toda. Era charmosa e delicada a mãe jovem se acomodando com sacolas e pacotes entre as pernas com objetos certamente comprados na capital na busca da raridade e qualidade ou outros atributos que não vem ao caso.

Ray Dos Santos, um rapaz com seus 30 anos aproximadamente, vinha arrastando uma bengala metálica em forma de tubos dobráveis que se encaixam uns nos outros. O rapaz era cego tal com era Charles, e carregava um sorriso misterioso e nada comum exceto a semelhança com o Gênio Ray Charles, who may rest in peace... (Não gosto da sigla RIP).

Ray De Santos neste dia tinha acabado de ressuscitar o sorriso perdido do Gênio-Ray-Charles-The-Genius. Para todos os efeitos, aquele sorriso era um belo sorriso, como não era? Um sorriso que não apontava para nada com a cabeça erguida para um céu que ele não podia ver! Um céu que não podia sequer imaginar, pois o céu do Ray De Santos não podia ter qualquer imagem senão uma nuance de ausência de luz. Confortavelmente acomodado, ou quase, Ray Dos Cometas dedilhava um celular como se fosse um pandeiro ou uma caixinha de fósforos tal como fazia Cyro Monteiro no Samba pop de outrora. Cyro Monteiro dedilhava e chacoalhava um sambinha, já o Ray Dos Cometas dedilhava em silêncio para pescar algum som nos seus fones de ouvidos brancos que contrastavam legal com sua pele negra. Ray era um rapaz dos tempos modernos que nem poderia ter imaginado trazer à minha memória as TVs de tubo com suas telas bojudas e nada retas. Eram simpáticas e femininas as curvas das TVs à tubo de raios catódicos. A antiga televisão à tubo de casa comprada no Brasil dos anos 1970 se assemelhava à um ventre ligeiramente grávido e o sobrenome da grávida era Philco. Bons tempos românticos em que objetos ficam grávidos.

No escuro de e à caminho do mar, Ray balançava seus pés freneticamente no silêncio dos cegos. Ele usava tamancos de plástico que me lembravam os tamancos suecos de madeira e couro com um enfeite feito tiara. O tamanco do Ray não tinha tiara ou qualquer adorno mas era um tamanco de plástico arredondado. Ray não tinha os pés descalços mas mantinha a essência de um Ray sambista com o gingado dos sem sapatos. Ray do seu balanço silencioso emite ruídos diminutos que creio mais inteligentes românticos e musicais do que fazem os gringos do ocidente com um tipo de música dita concreta. O que mais concreto do que um gemido sonoro emitido por Ray De Santos? Nada! John Cage certamente teria gravado junto com interpretação do Ray, uma obra para o selo Deutsche Grammophon, posso apostar e Ray De Santos poderia definitivamente brilhar (nos olhos dos outros é claro) em Berlim e Dresden, quem sabe!

Continuo descendo com meus pares montados num cometa em plena descida e penso na energia que Ray trazia para todos quando olhava pro nada e pra cima sorrindo nervosamente.
Ray sorria e gemia numa linguagem muito especial, a linguagem dos céus e dos anjos que o protegem. Talvez este canto de louvor aos anjos já surdos, venha nos cobrir de afeto e de música, A música do silêncio, dos cegos, dos surdos e dos excluídos.


Sami Douek
28 de julho de 2019
(fotos tiradas em 25 de julho de 2019)

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